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Maíra Ferreira de Oliveira - 08/11/200 - 31/10/2010 |
Qual seria seu sentimento ao perder uma filha de dez anos de
idade? Dor? Angústia? Desejo da própria morte?
Qual seria seu sentimento ao perder uma filha de dez anos de
idade por negligência dos profissionais de saúde que a atenderam? Dor e
angústia, também, mas o desejo da própria morte certamente se transformaria em
força para lutar por justiça.
Se Deus define a hora do nascimento e morte, e os bons
profissionais da medicina lutam incansavelmente para prolongar e dar qualidade
às vidas até que chegue o momento de Deus, quem são estes que desprezam vidas?
O que querem? A serviço de quê?
Ficamos impotentes diante destes julgadores da vida e da
morte. Perdemos as nossas e a vida daqueles que amamos. Insubstituíveis. Até
quando?
Quando a dor da morte
clama por justiça
Nos choca profundamente casos de latrocínio (roubo seguido
de morte) divulgados pelas mídias, e nos choca mesmo quando assistimos em
filmes. Aquele momento de impotência da vítima, geralmente amarrada enquanto
marginais a executam ou executam alguém diante de suas vistas.
Coloquem-se, por um minuto apenas, nessa situação.
E agora respondam: o que esta cena diferencia de muitos
atendimentos médicos, em especial na Saúde Pública? Os marginais têm diplomas,
autorização e poder que lhes garante a impunidade.
Esse é caso de Maria Esmeralda, mãe da jovem Maíra Ferreira
de Oliveira, estudante, modelo, que morreu em 2010, aos 10 anos de idade,
vitimada mais pelo descaso do que pela meningite.
Algemada por forças invisíveis, sob ordens severas do corpo
de profissionais de saúde pública, primeiro do Centro Regional de Saúde do
Bairro Coophavila II, que deveria prestar atendimento de urgência e emergência
para adultos e crianças; depois no Hospital Regional de Mato Grosso do Sul –
Rosa Pedrossian, Maria Esmeralda acompanhou o sofrimento e morte de sua filha
caçula, Maíra.
Assim, impedida de buscar outro socorro por limitações
financeiras e, depois, pela proibição expressa de retirar a menina sem a devida
alta médica e sem acompanhamento da ambulância, que não vinha, que não havia, a
mãe acompanhou o apagar da chama de vida naqueles olhos tão cheios de
esperanças, de sonhos.
Acompanhe o relato de próprio punho que Maria Esmeralda,
numa tentativa desesperada de resgatar o tempo e poder modificar os
acontecimentos, escreveu. No momento de extremo abalo emocional, Dona Esmeralda
não anotou os nomes dos médicos, enfermeiros ou estagiários, e de alguns
relembra apenas o primeiro nome.
18 de
novembro de 2010
Madrugada, 2 horas – ela [Maíra] começou a vomitar e sentir
dor de cabeça. Eu dei soro fisiológico e Dipirona, mas não adiantou. Esperei até
às 5 horas da manhã, porque o primeiro ônibus começa a circular às 5h20, e a
levei ela até o ‘24 horas da Coophavilla II’ [Centro Regional de Saúde do
Bairro Coophavila II], pois no meu bairro [Lageado] não tem [posto de
atendimento médico] 24 horas.
Por volta das 6h20 ela foi atendida. Informei ao médico que
ela havia tido meningite viral em 2004 para 2005, e ele me respondeu “brusco”
que não tinha nada a ver uma coisa com a outra, que ela tinha uma virose muito
forte. Eu disse que ela estava com medo porque os sintomas eram os mesmos, a
diferença é que ela não abria os olhos.
Ele não fez o teste da meningite, examinou a garganta,
ouvidos, auscultou o peito e as costas e receitou Dipirona e Plasil para cortar
o vômito e a transferiu para o repouso infantil. Às 7h a medicação ainda não
havia sido feita. Fui ao balcão das enfermeiras e perguntei: – O médico não
deixou nenhum papel com a medicação para a minha filha?
Elas estavam sentadas e uma me respondeu: – Se a senhora
esperar um pouco, a medicação já vai.
Eu disse: – Sabe a que horas eu sai do consultório? Seis e
vinte e cinco. Sabe que horas são agora? Sete horas e ela está com muita dor.
Em seguida a enfermeira entrou no repouso com a medicação.
Sete horas houve troca de plantão, chegou outro pediatra,
mas foi atender a uma emergência, pois não havia clínico-geral. Nesse momento
chegou a doutora Fátima, olhou a Maíra e disse que iria esperar um pouco,
aguardar sua melhora, para liberá-la
para casa. Só que a febre não baixava e o vômito e a dor não cortava. Eu
tenho o termômetro digital e a toda hora eu media a febre para ver se tinha
cortado, mas permanecia com febre entre 38ºC a 38,5ºC. Foi, então, que ela
pediu pra dar um banho na Maíra, mas eu não dei, pois ela não abria os olhos,
eu não conseguiria segurar ela e o soro ao mesmo tempo. Foi então que eu pedi
encaminhamento para o hospital. Isso já era 10h30, mais ou menos, e ela disse
que iria encaminhar para o hospital.
Só que não tinha ambulância. O enfermeiro disse: – Mãe, nós
não temos previsão de que horas vai chegar a ambulância.
Eu fiquei lá, esperando. Por volta de 11h, a médica passa no
corredor e diz: – Mãe, essa criança ainda está ai? Eu falei: – O enfermeiro
falou que não tem ambulância.
A médica respondeu: – Espera um pouquinho que eu vou atrás. Em
aproximadamente 10 minutos a ambulância chegou com uma pessoa desfalecida
dentro, e a enfermeira disse para eu ir sentada em um banco e a Maíra em outro.
Eu coloquei o cinto nela e fui amparando o vômito no cesto de lixo. Demos
entrada às 12h no Hospital Rosa
Pedrossian, entregamos o encaminhamento e fomos para a pediatria.
Nesse momento, fomos isoladas no último quarto do corredor e
a médica [de origem oriental, provavelmente japonesa, que atendeu] disse que
não era para sair com ela no corredor sem usar máscaras.
A todo o momento eu pedia socorro. Pedi para a enfermeira e
até mesmo para a estagiária [residente] para medicar minha filha. Mas elas
falaram que não podiam fazer nada enquanto não fizesse a coleta para o exame,
pois esse era o procedimento do hospital.
Eu fui no consultório da pediatria, que era ao lado do
quarto, e pedi para ela fazer alguma coisa pela minha filha, para medicar a
Maíra. Ela disse: – Essa criança está desidratada e tem que tomar soro. Eu
disse a ela: – Sabe quantos litros de soro ela já tomou, contando com esse? Cinco
bolsas.
Ela retornou ao quarto, olhou a Maíra e me disse: – Eu não posso medicar
enquanto não colher a amostra de sangue para fazer o exame. Depois que falou
isso, deu um copo de coleta de urina, por volta das 15h30 e o enfermeira veio
colher o sangue para o exame.
Eu ligava desesperada para um e para outro amigo ou parente,
e quando deu 16h, a Zilda, minha irmã, chegou ao Hospital, e entrou no quarto e
viu a Maíra com a boca cheia de sangue, e me avisou. Eu corri e levantei a
cabeça dela para ver o sangue, e ela já tava desfalecida. Eu pedi a Zilda para
chamar a médica, que veio correndo, sem máscara ou luvas.
Falou: – Eu quero ver do que que é esse sangue. O enfermeiro
e a estagiária estavam com ela. Eu ajudei a abrir a boca da Maíra e vimos que
ela havia engolido um dente. Nisso ela falou para os enfermeiros e para a
estagiária: – Corre e chama a infectologista.
Então veio a doutora Tatiana [infectologista]. Eu ajudei a
colocar a Maíra na maca e já colocaram o aparelho no dedinho dela e mediram a
pressão.
A infectologista falou: – Vamos fazer uma tomografia. Mãe,
vamos fazer o exame da coluna, vamos tirar o líquido, segura na mão dela. Mas a
outra médica disse que era melhor eu sair, pois o exame era muito doloroso. Eu
fiquei ao lado de fora, na porta de emergência enquanto eles tiravam o líquido,
e ela nem gemia, nem se mexia. Depois que tiraram o líquido, a doutora Tatiana
falou que estava confirmada a meningite, mas que ela queria saber que tipo era. E
falou: – Correndo para a UTI, rápido.
Entraram com ela na UTI e eu fiquei na porta, o médico
conversando comigo, dizendo quais eram os procedimentos. Nesse momento a
enfermeira passou correndo por nós, com uma mangueira na mão e olhou para ele. Eu
pedi para ver a Maíra antes de ir embora. Ele disse: – Amanhã, mãe, às 10
horas. Entrou correndo para a UTI.
No outro dia eu cheguei ao hospital muito ansiosa, queria
ver minha filha, mas ela já estava entubada. Eu assustei com aquilo.
O médico da UTI disse: – Mãe, eu sinto muito mas o quadro
dela é irreversível. O diagnóstico é morte encefálica.
Ela tinha entrado em coma profundo às 17h do dia anterior,
ele me disse.
Eu entrei em desespero. Perguntei se ele tinha filho para
ele falar para mim que sentia muito. Eu disse: – O senhor sabe como se chama
esse estágio que a minha filha está? Negligência médica. Não a socorreram a
tempo, eu sou leiga em medicina, mas sei que não socorreram ela a tempo. Tarde
demais.
Maíra foi oficialmente a óbito no dia 31 daquele mês de
outubro de 2010 e deixou como epitáfio a questão:
O que afinal me matou,
meningite ou negligência médica?