Eliane Brum para El País - 26/nov/2013
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Em seu gesto e na sua
reivindicação, José Genoino e José Dirceu demonstraram não compreender o Brasil
dos protestos: desde que as manifestações tomaram as ruas, presos políticos são
os comuns
Havia
algo de melancólico no braço erguido dos dois Josés, Genoino e Dirceu, ao serem
presos por corrupção. E na afirmação: “Sou preso político”. O punho cerrado é o
gesto de resistência de uma geração que lutou contra a ditadura, pegou em
armas, foi presa, torturada e assumiu o poder na redemocratização do país. É
também o gesto que não mais encontra destinatário para além de seus pares e de
parte da militância do PT. É, principalmente, o gesto que não ecoa na juventude
que se tornou protagonista dos protestos que mudaram o país. No Brasil que
reconheceu Amarildo, o pedreiro, como mártir da democracia, a evocação vinda de
José Genoino e de José Dirceu para ocupar esse lugar não encontra ressonância.
Desde as manifestações de junho, os presos políticos são os comuns. Para um
partido tão hábil em esgrimir simbologias, não compreender o Brasil forjado no
ano que não terminou é uma tragédia talvez maior do que a prisão por corrupção
de duas de suas estrelas históricas.
Mártir político é Amarildo de Souza. Favelado,
negro, analfabeto, 43 anos, o ajudante de pedreiro conhecido como “boi” pela
sua capacidade de carregar sacas de cimento desapareceu em 14 de julho ao ser
levado a uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha, no Rio de
Janeiro. Amarildo, o homem comum vítima da política de criminalizar, torturar e
executar os pobres. Uma política que atravessa a história do Brasil, persiste
na redemocratização e se manteve nos governos de Fernando Henrique Cardoso,
Lula e Dilma. Não era o primeiro a desaparecer depois de entrar num posto
policial, não foi o último. Mas, pela primeira vez, um homem comum, carregando
em si todas as marcas da abissal desigualdade do Brasil, foi reconhecido como
um desaparecido político da democracia, lugar destinado a ele pela convulsão
das ruas. Esta pode ter sido a maior transformação colocada em curso pelos
protestos.
"Pela primeira vez, um
homem comum, carregando em si todas as marcas da abissal desigualdade do
Brasil, foi reconhecido como um desaparecido político da democracia"
Preso
político é Rafael Braga Vieira, 26 anos, catador de latas, morador de rua,
negro. Ele foi preso em 20 de junho, durante uma manifestação na Avenida
Presidente Vargas, no Rio. Já tinha sido preso por roubo em duas outras
ocasiões e cumprido as penas completas. Desta vez, está encarcerado, sem
julgamento, há cinco meses no presídio de Japeri. Seu crime: carregar uma
garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária. E uma vassoura, mas esta não
foi considerada suspeita. Seu caso foi relatado à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Desaparecido político é Antônio Pereira, 32 anos,
auxiliar de serviços gerais, negro. Sumiu em 26 de maio, em Planaltina, no
Distrito Federal. Há suspeita do envolvimento de policiais militares no seu
desaparecimento. Manifestantes marcharam até o Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e Territórios para protestar pelo seu sumiço. A Comissão de Direitos
Humanos do Senado passou a investigar o caso.
Morto político é Douglas Rodrigues, 17 anos,
estudante do terceiro ano do ensino médio e atendente de lanchonete. Levou um
tiro no peito de um policial numa tarde de domingo, 27 de outubro, quando
estava diante de um bar com o irmão de 13 anos, na Vila Medeiros, em São Paulo.
Só teve tempo de dizer uma frase, que se transformou num símbolo contra
o genocídio de gerações de jovens negros e pobres das periferias do Brasil.
Douglas fez sua última pergunta, um conjunto de vogais e consoantes onde cabia
uma vida inteira, antes de cair morto: “Por que o senhor atirou em mim?”. Em
protesto pela sua morte a população incendiou ônibus, carros e caminhões e
depredou agências bancárias.
Estes – e muitos outros – tornaram-se os presos
políticos, os desaparecidos políticos e os mortos políticos da democracia desde
que os brasileiros redescobriram as ruas e deslocaram a política para fora dos
partidos e das instituições. Por isso o braço erguido, o punho cerrado, dos
dois Josés, Genoino e Dirceu, é tão melancólico. É o gesto que não se completa
ao não encontrar o presente. Lula, o PT e a cúpula do governo concentram sua
preocupação e seus esforços para reduzir o impacto das prisões de figuras
históricas na eleição de 2014, na qual Dilma Rousseff é a favorita para um
segundo mandato. Talvez devessem se dedicar mais a escutar as novas simbologias
forjadas nos protestos.
"A frase “por que o
senhor atirou em mim? se transformou num símbolo contra
o genocídio de gerações de jovens negros e pobres das periferias"
Foi
justamente Lula, com a enorme força simbólica de ser o primeiro homem comum a
chegar ao poder no Brasil, que em 2009 compactuou com a desigualdade histórica
e a política arcaica, em uma frase: “Sarney tem história no Brasil suficiente
para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”. Ao pronunciá-la,
protegeu o político oligarca que há décadas colabora para promover a miséria de
milhões de homens, mulheres e crianças comuns no Maranhão, um dos estados mais
pobres do país, e mostrou, como na frase famosa do clássico de George Orwell,
hoje um clichê, que, quando convém, compartilha da ideia de que existem aqueles
que são mais iguais que outros, tão iguais que merecem tratamento diferenciado.
A reivindicação de “preso político” por Genoino e
Dirceu aponta para um cálculo que visa à biografia pessoal de cada um e à do
próprio PT, assim como à disputa na construção da memória do país e do
imaginário imediato. É também um apartar-se, na linguagem, do preso comum, uma
impossibilidade de igualar-se a todos os outros detentos, que também declaram-se,
em sua maioria, “inocentes”. Nos dias que antecederam à prisão, José Dirceu,
aquele que anunciaria ser um “preso político da democracia por pressão das
elites”, descansava num resort de luxo na Bahia que só as elites têm dinheiro
para frequentar. Na primeira semana de prisão, foi citado, como exemplo de maus
tratos, que Genoino estava tomando “água da torneira”. Isso num país em que
“água da torneira”, mesmo depois de dois mandatos de FHC, dois de Lula e três
anos do governo de Dilma Roussef, é sonho distante para muitos, uma realidade
que o sertanejo Genoino conhece bem. Familiares de presos – estes comuns –,
condenados sem crime e sem pena a noites de espera e humilhações para conseguir
visitar pais, maridos e filhos na prisão da Papuda, em Brasília, revoltarem-se
com o que definiram como “privilégio” daqueles que reivindicam o status de
“presos políticos”.
Na prisão, a estrela do PT, que simbolizou – e
ainda simboliza para muitos – tanta esperança de igualdade, foi reduzida ao
sentido original do jargão publicitário: os presos do “mensalão” ganharam na
prática e no imaginário da população o status de gente diferenciada. Esta é uma
perda importante para o patrimônio simbólico construído pelo partido a qual
seus líderes parecem estar dando pouco valor. O espetáculo promovido pelo
ministro Joaquim Barbosa, ao levar os presos algemados para Brasília no feriado
da Proclamação da República, foi um excesso em um momento histórico que exigia
serenidade e contenção. Deixar presos de regime semiaberto em regime fechado
foi um abuso, a que milhares são submetidos por falta de vagas no cotidiano do
sistema prisional. A saúde e a vida de José Genoino devem ser protegidas. Não
por conta de sua história, mas porque é dever do Estado proteger todos os
presos sob sua tutela.
"A reivindicação de
“preso político” por Genoino e Dirceu aponta para um cálculo que visa à
biografia pessoal de cada um e à do próprio PT"
Defender
a proteção da vida em nome da “dignidade da biografia” é uma distorção. Só
colabora para justificar atrocidades cometidas fora e dentro do sistema
prisional contra aqueles cuja história é reduzida ao termo encobridor de
“bandido”. Os mesmos que, com frequência escandalosa, são executados sem
julgamento num país que não tem pena de morte. Crimes cometidos, por exemplo,
por polícias como a Rota, a brutal tropa de elite da PM paulista, há quase duas
décadas sob o comando dos sucessivos governos do PSDB. Mas é preciso lembrar
que também faz parte da biografia de Genoino tê-la defendido em 2002, ao se
candidatar ao governo de São Paulo, numafrase que obedecia ao pragmatismo
eleitoreiro: “Uma política de direitos humanos não deve impedir a Rota de agir
com energia e com força”.
O fato é que Genoino só teve seu direito assegurado
por ser um preso privilegiado. Mas a distorção não é a de ele ter recebido
assistência, mas a de que todos os outros presos continuem sem ela, a de que é
preciso ser um preso “diferenciado” para ter seus direitos básicos garantidos
pelo Estado. As vozes que se ergueram para denunciar os maus tratos a que ele
era submetido jamais foram tão fortes para defender os presos comuns que
adoecem de tuberculose e Aids no cárcere e morrem sem tratamento. É um passo
atrás no processo civilizatório quando as pessoas gozam com o sofrimento de
Genoino, como ficou explícito nos comentários das redes sociais, alguns
torcendo até mesmo pela sua morte, como se não fosse de um ser humano que se
tratasse. Mas é preciso escutar também os “bárbaros” para compreender que os
mais pobres, sem nenhum problema com a lei, com frequência criminosa não
encontram tratamento digno – ou mesmo tratamento algum – no Sistema Único de
Saúde (SUS). E que cada vez mais é claro para todos que o dinheiro que se esvai
na corrupção é também o que falta na saúde.
"Defender a proteção da vida em nome da “dignidade da biografia” é uma
distorção"
Do
partido que diz falar em nome do homem comum esperava-se a grandeza de declarar
que mártires são todos os outros. E que direitos de todos não podem ser
privilégios de um. Ao demonstrar preocupação por Genoino, Dilma Rousseff
demonstrou também omissão por todos os outros presos que vivem uma rotina de
ilegalidades e desrespeitos aos direitos humanos mais básicos nas prisões do
país que o PT governa há mais de uma década e que tem a quarta maior população
carcerária do mundo. Sem esquecer que é dos estados o encargo de construir e
administrar os presídios, assim como proteger os presos, obrigação em que
todos, de diferentes partidos, falham. A responsabilidade ao perpetuar o que o
ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso chamou de “masmorras
medievais” é compartilhada. São mais de meio milhão de presos encarcerados em
situação tão brutal que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, chegou a
dizer que preferiria morrer a cumprir pena.
Assumir-se como preso comum teria sido um gesto
simbólico mais forte para quem estreou na vida pública como preso político de
uma ditadura, daquela vez sim sem julgamento. Aqueles forjados na luta armada
contra um regime de exceção, ao assumirem o poder, lutaram menos do que
deveriam pelos presos comuns que continuaram e continuam sendo torturados e
mortos nas delegacias, cadeias e prisões do país. Ainda hoje a tortura dos
presos políticos na ditadura, a maioria deles de classe média, recebe muito
mais atenção do que a tortura sistemática dos presos comuns que perdura na
democracia. Sem esquecer que a maioria dos presos torturados e confinados no
sistema carcerário brasileiro é composta por negros e pobres.
"É um passo atrás no
processo civilizatório quando as pessoas gozam com o sofrimento de Genoino,
como ficou explícito nas redes sociais"
É
também de classe social que se trata. Não é um acaso que Manoel Fiel Filho, o
operário assassinado pela ditadura, tenha muito menos ressonância na democracia
do que Vladimir Herzog, o jornalista assassinado pela ditadura, embora a morte
de ambos tenha impulsionado o movimento da sociedade pelo fim do regime
militar. Quando Dirceu e Genoino levantam o braço e cerram o punho,
declarando-se “presos políticos”, não estão denunciando apenas o que consideram
um “julgamento de exceção”, mas colocando-se diante de todos os outros presos
como “exceção”. É como dizer: “Eu estou aqui, mas sou melhor do que vocês”.
O espetáculo promovido por Joaquim Barbosa para o
que chegou a ser interpretado, com um tanto de exagero, como uma “refundação da
República” revelou mais do que estava programado. Mostrou esse lapso, esse
corte no tempo, em que o braço erguido, o punho cerrado, se alienou das ruas.
Quando as manifestações de junho começaram, a classe média conheceu a
truculência da polícia sem perceber que estava diante de seu espelho. Nas
quebradas de São Paulo, o poeta Sérgio Vaz ironizou: “Aqui na periferia as
balas continuam sendo de chumbo. Estamos reivindicando um upgrade para balas de borracha”. E logo as
balas de chumbo acertaram dez (nove moradores e um policial), no complexo de
favelas da Maré, no Rio, na sequência de um protesto. E então, em 14 de julho,
ao desaparecer, Amarildo de Souza apareceu diante do Brasil.
"Para a juventude que
protestou, os presos políticos passaram a ser os manifestantes levados para a
cadeia pela polícia"
Para
a juventude que protestou – e em vários momentos expulsou das ruas os
militantes de partidos, incluindo os do PT –, os presos políticos passaram a
ser os manifestantes levados para a cadeia pela polícia do Estado democrático.
Nesta apropriação simbólica – que se inicia antes, mas se consolida a partir
dos protestos –, ao mesmo tempo retoma-se o conceito de preso político da
geração de Genoino e Dirceu, forjado nos atos contra a ditadura, mas com um
sentido próprio, na medida em que a democracia traz uma nova complexidade para
as questões que envolvem o termo. No mesmo movimento, assume-se o nome e o
rosto das vítimas anônimas e despolitizadas da violência racial e de classe e
se dá a elas um conteúdo político. Como aconteceu com Amarildo – mas não só.
Vale a pena lembrar que o estopim dos protestos foram 20 centavos – que muitos,
em especial a classe média, acharam pouco para tamanha comoção, mas que se
tratava da dor de milhões de invisíveis cuja vida é mastigada dia após dia em
horas perdidas dentro de ônibus superlotados. Era uma escolha pelo homem comum
– incorporando-o em cada um.
É importante perceber ainda que, para uma parte
significativa dos manifestantes, os presos políticos são aqueles que a maioria
dos partidos, assim como grande parte da imprensa, chamam de “vândalos”. Se os
Black Blocs têm vários motivos para cobrir a face, há neste ato também uma
escolha pelo anonimato, um fundir-se na multidão. Apoiando ou não suas ações, é
preciso reconhecer que escolher se mostrar “sem rosto” é um gesto político de
grande significado.
A cara desses movimentos sem líderes anunciados e
com causas múltiplas é a da multidão. Mas, a cada momento, a multidão pode
assumir a face de um anônimo, para lhe dar coletivamente um nome e uma
história. Na hashtag do Twitter, #SomosTodosAmarildo. Ou
somos todos aquele que é torturado, violado, morto. #SomosTodosUm. Esta é uma
mudança profunda que os homens que levantaram o braço e cerraram o punho
parecem não ter compreendido. Se ela parte dos protestos nas ruas, também os
transcende para ocupar outros redutos. Enquanto a pequena saga de Genoino se
desenrolava, na semana passada, Caetano Veloso e Marisa Monte cantavam no Circo
Voador, no Rio, para levantar fundos para a família de Amarildo. A certa
altura, a cantora pediu à plateia que
vestissem a máscara de Amarildo que haviam recebido na entrada: “Vamos deixar
registrado para a posteridade esse momento onde a gente incorpora o Amarildo e
graças a isso consegue transformar tantas coisas. É assim que a gente consegue
mudar esse país”. A máscara é a possibilidade de ser um e, ao mesmo tempo,
todos os outros.
A mudança é um momento agudo de um processo
histórico no qual Lula e o PT tiveram, mais do que qualquer outro político e
partido, uma contribuição decisiva, no concreto e no simbólico de sua ascensão
ao poder. Apartaram-se, porém, e parecem estar bem menos preocupados do que
deveriam com seu divórcio com as ruas. O braço erguido, o punho cerrado, é um
capítulo melancólico de um partido que parou de escutar. Em parte porque
acredita conseguir manter o voto dos homens e mulheres comuns que recebem o
Bolsa Família e ainda se contentam com o que, se por um lado é enorme, ao
reduzir a miséria e a fome, também é pouco para a potência contida numa vida
humana.
A tragédia dos dois Josés do PT não é apenas terem
sido presos por corrupção, mas a impossibilidade de dizer #SomosTodosOsPresos.