O rosto oculta o que o coração sabe
Se o que está estabelecido é uma rede “social” que facilite
os contatos, aproxime as pessoas e amplie o universo de amigos, tudo correto, mantemos
a mesma hipocrisia que cercam templos religiosos, ambientes de trabalho,
clubes... mantemos nossa rotina de mentiras e falsidades. Mentiras e
falsidades? Podemos crer que retratamos num desespero surdo, o mundo que já não
cabe dentro de nós. Gostamos de animais, crianças e lutamos pelos
desprotegidos. Nos indignamos com as injustiças e até aceitamos convocações
para manifestações cívicas.
Tudo é tão falso quanto a atribuição da frase acima para Rui
Barbosa, quando na verdade o frasista é Millôr Fernandes. Erros de atribuições
onde se conferiu citações de Cecília Meireles ao padre Zezinho, Machado de
Assis fala sobre coisas acontecidas décadas após sua morte e por ai vai. Podemos até atualizar o poema Autopsicografia
de Fernando Pessoa, substituindo a palavra “poeta” por ‘navegante do facebook”:
O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir
que é dor / A dor que deveras sente. // E os que lêem o que escreve, / Na dor
lida sentem bem, / Não as duas que ele teve, / Mas só a que eles não têm. // E
assim nas calhas de roda / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de corda / Que
se chama coração.
O
rosto enganador deve ocultar o que o falso coração sabe.
(William Shakespeare). E este rosto enganador pode não ser a real face de quem
navega. Falamos com um, mirando no olhar estático de outro. Imagens nos
substituem.
Ali, somos heróis defensores da Justiça, mas também somos
bocas, caras, seios e bundas. Uma enorme vitrine de almas e corpos. Alguns
levam tão a sério que rompem amizades e laços familiares, outros não lhe dão a
menor importância. O mercado descobriu este consumidor de portas e mentes
abertas, convidativo e indefeso. O que era uma rede social logo se transformou
numa enorme vitrine de inutilidades.
Como não poderia deixar de ser, Deus está presente nas mais
diversas postagens. O meu, o seu, o dos outros, juntos com a negação dos ateus.
Deus é um grande mercado e nessa hipocrisia consentida seu santo nome atribui,
em vão, qualidades que não carregamos.
Talvez seja menos uma hipocrisia e mais um enorme biombo,
detrás do qual gritamos por um mundo que não conseguimos ter. Quase como quando
se lê Drummond, Pessoa, Vargas Llosa, Vinicius... um querer estar ali, naquelas
linhas, tomados do mesmo sentimento.
Chegamos à pieguice de supor que crianças doentes, adultos
moribundos e a própria miséria serão amparados em generosas doações por
compartilhamentos, cutucadas, curtidas. Essa concepção de esmola cibernética
retoma o velho hábito de comprar as portas do céu, nos eximindo de nossas
responsabilidades sociais.
Talvez o grande problema do mundo virtual é o fato de não ser
exclusivo e único. Existe uma realidade que nos assombra quando saímos da
frente do computador, de dentro do facebook e caímos na mesma rotina. Deixamos
a perfeição e vivenciamos nossos erros, nossos preconceitos, racismos,
intolerâncias.
Todo o amor compartilhado e as assertivas de justiça e ética,
não resistem à dura realidade da concorrência pela vida.
Mas não é só de amores e seres perfeitos que vive nosso mundo
virtual. Quem não presenciou, ainda, as trocas de farpas entre concorrentes, as
invejas dissimuladas, os mal-quereres disfarçados?
Os políticos descobriram as redes e, como tudo o que tocam,
conseguiram conspurcá-la. Ataques e autoelogios convivem num mesmo espaço. Essa
virtualidade das benevolências e
competências por momentos nos leva a crer que presenciamos e vivenciamos num
mundo só nosso, com suas imperfeições, sujeiras, buracos, misérias. Afinal,
tudo o que fazem e fizeram melhoraram tanto nossa qualidade de vida. Os que
saíram dizem que os que estão destruíram as cidades, os que estão dizem que
salvaram a cidade da destruição.
A hipocrisia do facebook é igual à hipocrisia da nossa
realidade, nosso cotidiano de religiões, políticas, empregos, estudos...
Por vezes é melhor, porque nosso cérebro vive por instantes a
virtualidade dessa realidade subjetiva. Estamos em nosso mundo perfeito, sem
arrotos, sem flatulência.
O facebook, no dizer de Eduardo Cabral, é “A Tecnológica
Reinvenção da Solidão”. Nos fechamos nisso, queremos isso. Assim como um livro
no silêncio ou um filme na sala de cinema, somos os senhores de nosso mundo,
perfeito.
Tudo é novo. Tudo é excesso. Até que se ajusta.
Houve tempos em que atores de novelas eram abordados nas ruas
e agredidos por palavras ou mais, quando interpretavam os vilões; e consolados
e agraciados quando eram os pobres mocinhos e mocinhas que sofriam as agruras
das maldades alheias. Isso acabou. Aquela virtualidade antiga dos pais e avós,
sofrendo , sorrindo e vivendo a vida de seus heróis/vilões, hoje é um grande
anedotário.
Assim será com as redes sociais. O exagero que se ajusta,
porque nada muda nossa realidade de pessoas sórdidas ou não. Agiremos da mesma
forma sempre, com nossos preconceitos e nossas imperfeições, buscando nas mais
diversas fontes o perdão que não nos permitimos.
E ficará em nós um pouco das coisas recebidas, um tanto dos
lamentos dos negros, dos brancos, dos amarelos e vermelhos. A rede veio para
ficar e escancarar as verdades. Para os observadores poderem pesar a diferença
entre discurso e prática; para os noticiários serem desmentidos, para que a
miséria humana tenha suas vísceras expostas.
Para o bem ou para o mal. Como sempre, desde tempos
imemoriais, seu livre arbítrio lhe conduzirá.
3 comentários:
Rolou uma vez no twitter: "ser popular no facebook é como ser milionario no banco imobiliario". Exatamente isso: pura ilusão.
E o mais absurdo, ou o mais triste, ou os dois, é quando o "navegador do facebook" se condena à solidão ao abdicar de relacionamentos profundos e verdadeiros pra mergulhar de cabeça nesse universo "genuinamente fake", de sentimentos e relacionamentos idem. Tudo absolutamente superficial e fútil, nessa imensa feira de vaidades, onde cada um procura expor aquilo que o outro (ou outros) querem ver e comprar como reais.
Mas, copiando sua próprias palavras, "seu livre arbítrio lhe conduzirá."
Rolou no twitter: ser popular no facebook é o mesmo que ser milionario no banco imobiliario. Exatamente isso: pura ilusão.
Mas o mais trágico, ou o mais triste, ou os dois, é o "navegador do facebook" se condenar à solidão ao abdicar de relacionamentos profundos e reais, e por isso mesmo verdadeiros para mergulhar de cabeça nesse universo "genuinamente fake", com relações e sentimentos idem.
São relacionamentos totalmente superficiais, em uma feira das vaidades onde se expõe o que os outros ( ou O outro) quer ver e comprar como real.
Copiando suas próprias palavras, "seu livre arbítrio lhe conduzirá."
Talvez seja o preço a se pagar para conseguir (sobre) viver nesse mundo de aparencias.
Então o general Pompeu foi profético ao proferir a famosa frase, eternizada por Fernando Pessoa:
"Navegar" é preciso, viver não é preciso. rsrsrs
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