Campo Grande foi coberta por outdoors
e leds sobre um erro médico que quase custou a amputação do braço de uma
paciente vítima de descaso em procedimento quimioterápico.
Após
o diagnóstico de um tipo dos mais agressivos de câncer de mama, Kênia Reis
enfrentou todo o tormento psicológico que se segue ao fato de encarar uma
doença estigmatizada como a própria morte, ou a deformação física. Por mais
avançados que estejam os tratamentos para os diversos tipos de câncer, menos
agressivos e com menores sequelas, a citação do termo provoca transtornos
pessoais e familiares sem conta.
Vencida
a primeira etapa de sua jornada, realizada com pleno êxito a cirurgia, iria
conhecer a real e mais temível barreira entre a doença e a cura: o erro médico.
Conheça
o histórico do caso conforme descrito por Marcos César Américo dos Reis, marido
de Kênia.
Erro em quimioterapia quase leva à amputação do braço
Minha esposa, Kênia Reis recebeu o
diagnóstico de câncer de mama em abril de 2012. Procuramos um mastologista, Dr.
Victor Rocha [Pires de Oliveira], e agendamos a cirurgia para o dia 16 de maio.
No dia 30 de maio, fomos a São Paulo para uma consulta no Hospital
Sírio-Libanês, com o Dr. Arthur Katz. Queríamos uma opinião para o tratamento
oncológico quimioterápico, que é definido após o resultado dos exames do
material colhido. Ficou estipulado que seriam 4 aplicações de AC [Adriamicina
(Doxorubicina), Ciclofosfamida] a cada 21 dias e 12 de IT.
Com
a indicação em mãos, nos deram a opção de realizar o tratamento no próprio
Hospital Sírio-Libanês, ou em Campo Grande. Retornamos. Trouxemos o formulário
médico completo e muito bem elaborado pela equipe do Dr. Arthur Katz, que
indicava ser ela portadora de fibromialgia [uma forma de reumatismo associada à
da sensibilidade do indivíduo frente a um estímulo doloroso que atinge
músculos, tendões e ligamentos.]. Entregamos na clínica. Marcamos a primeira
sessão de quimioterapia para o dia 8 de julho. Fomos, eu e minha sogra,
acompanhando a Kênia. O erro começou no modo de aplicação, pois por ser um
tratamento longo, o indicado é o uso de um cateter portacath [cateter
implantado em procedimento de pequena cirurgia e após anestesia local] para
evitar inocular através de veias.
De qualquer forma, o
enfermeiro, seguindo orientações do médico responsável pela clínica, tentou por
três vezes “pegar a veia”, mesmo com a Kênia reclamando das fortes dores. Ela,
inclusive, questionou se não seria melhor o uso do portacath. O enfermeiro
consultou o médico que orientou que ele continuasse o procedimento. Uma
enfermeira conseguiu aplicar, mas pouquíssimo tempo passado e a Kênia começou a
sentir formigamento no local da aplicação. Como o ambiente era climatizado e
ela estava de blusa de mangas compridas, não verificou o local, mas avisou a
enfermeira que comunicou ao médico responsável. Ele estava no consultório em
outra consulta e apenas disse que era normal. Ela, então, suspendeu a manga da
blusa e percebeu que o braço estava avermelhado. A enfermeira retirou o
medicamento, interrompeu o tratamento e, quando consultado, o médico disse que
era apenas uma flebite [todo tipo de inflamação que ocorre na parede de uma
veia]. A recomendação foi aplicação de gelo, analgésico e encaminharam para
casa. A dose aplicada foi parcial porque interrompido e parte do medicamento
injetado fora da veia. Kênia foi para casa chorando de dor, agravada pela
fibromialgia, e iniciou aplicação de gelo, analgésicos. Ligamos para a
clínica, voltamos lá. O médico disse que era para interromper a aplicação do
gelo e tomar o medicamento Tilex. A dor não cedeu. Tentamos contato telefônico
por toda a noite e o médico não atendeu.
“O caso dela teve uma repercussão tão grande que foi tema de congressos. Nunca os médicos haviam visto tamanho dano físico por vazamento quimioterápico.”
Conseguimos falar com o enfermeiro,
foi em casa e, de lá, entrou em contato com o médico. Ele manteve o diagnóstico
de flebite. [O extravasamento é possível, mas não toma uma área tão extensa
porque, quando detectado, é imediatamente suspenso e, no local e em forma de
cruz, são aplicadas injeções de corticoide para limitar a área afetada.]
Consultamos a Dra. Carmencita [Sanches Lang], da Clínica Hope. Ela precisava a
informação de quanto medicamento havia sido administrado. Pedi ao médico que
informasse. Ele apenas enviou por e-mail. Como o procedimento para a contenção
do líquido não foi tomado na hora, tivemos que esperar o líquido delimitar para
observar a extensão e profundidade atingidas, onde cria uma necrose. Só após a
retirada do material necrosado, vai se conhecer a real extensão do dano e quais
os procedimentos a tomar.
Kênia,
apesar da “queimadura química” no braço, tinha que continuar o tratamento e, no
dia 23 de junho colocou o portacath e fez a primeira quimio, agora com a Dra.
Carmencita. Na segunda aplicação, a necrose no seu braço havia avançado, o que
lhe causava dores quase insuportáveis. Ficou internada entre 14 de julho e 18
de agosto, período em que fez a terceira sessão de quimio. Durante todo esse
período ela recebeu morfina para manter a dor suportável. Nesse período, o
médico que efetuou a primeira quimio, não nos ligou uma vez sequer para saber
do andamento do tratamento. Neste processo precisávamos de um cirurgião
microvascular para executar o processo de “debridamento” [ou desbridamento é
remoção do tecido necrosado de uma lesão].
O Dr. Kleder Gomes de Almeida, executou o procedimento após ela haver sido
transferida do Hospital Miguel Couto para o Hospital do Pênfigo, para avaliação
da extensão do dano. Até esse momento ela havia sido submetida a três sessões
de quimioterapia, agora passaria por três debridamentos.
O Drama da amputação
Retirada toda a necrose, a questão era decidir pela amputação, ou não,
do braço. Havia a dúvida sobre a possibilidade de um enxerto, alguns médicos não
acreditavam nessa possibilidade, dada a gravidade da lesão.
Decidimos por uma consulta no Hospital Sírio-Libanês. Fomos atendidos em
28 de agosto, pelos Drs. Katz e Marcelo Sampaio, cirurgião plástico que opera
na equipe do [Prof.] Dr. Alfredo [Carlos Simões Dornellas] de Barros,
mastologista. A condição para a cirurgia era dar continuidade ao tratamento
naquele hospital, sob supervisão de sua equipe. Fez, então, a quarta quimio.
Dia 8 de setembro foi realizada a primeira cirurgia de enxerto e poucos dias
após, iniciou a fisioterapia. Salvaram o braço.
Faltavam as quimioterapias com Taxol, mas em função dos agravantes, as
aplicações foram efetuadas a cada quinze dias. Depois foi a radioterapia que
terminou em 10 de janeiro de 2013. Ficamos residindo em São Paulo por seis
meses, em função do tratamento.
O caso dela teve uma repercussão tão grande que foi tema de congressos.
Nunca os médicos haviam visto tamanho dano físico por vazamento quimioterápico.
O último caso semelhante registrado havia sido na década de 1980. A equipe
médica ficou indignada.
O que nos doeu foi a “virada de costas” da clínica e, por conseguinte do
médico responsável. Problemas acontecem, entendemos isso, mas até hoje ninguém
da clínica nos contatou.
Ação jurídica
Nós
entramos com uma ação contra a Clínica, contra o médico responsável e contra a
Unimed, porque ele é um autorizado pelo plano de saúde. E por que eu vou mexer
com isso agora? Porque agora ela está bem e quer que isso sirva de lição porque
o braço, nunca vai voltar a ser normal.
Queremos
uma cobrança da responsabilidade. E este é um momento muito bom pela
oportunidade que está sendo criada pela série de matérias aqui que você está
fazendo aqui no Jornal Liberdade. A imprensa costuma ficar distante, e o
espírito corporativo da classe médica influi criando uma barreira de defesa.
Foi
realizada uma perícia janeiro de 2013, a pedido do Juiz, e temos os prontuários
do Sírio-Libanês, depoimentos de médicos, enfim. Outra razão é em defesa das
próprias clínicas sérias, dos bons profissionais, porque a partir do caso da
Kênia, muitos pacientes passaram a procurar hospitais em São Paulo para os
procedimentos de quimioterapia, como se a desconfiança tivesse contagiado todas
as clínicas de nossa Capital.
DEPOIMENTO DE KÊNIA
Eu não tinha que passar por isso...
Eu
já estava debilitada, emocionalmente instável com o diagnóstico de câncer e o
risco de outros dois nódulos nas auréolas serem tumores malignos. Ficou
comprovado apenas um tumor e determinado que seria feita a retirada deste tumor
e cinco gânglios que não acusaram malignidade, felizmente.
Mas
não basta o temor da doença e seu estigma que o paciente carrega, existe o
fator família, porque todos são afetados, tanto quanto o doente. E a força tem
que partir de você porque eles se transformam em espectadores impotentes. Como
a cirurgia foi um sucesso, veio a sensação numa mistura de alívio, mas com o
temor de passar pelo período da quimioterapia com seus efeitos colaterais,
também o momento de fragilidade, a alteração de seu visual como que você
perdesse um pouco de sua personalidade.
Meu
câncer era de um tipo muito agressivo, então a partir do problema causado pelo
erro na aplicação o foco dos médicos era entender como manter a quimio para
combater o câncer e ao mesmo tempo tratar o ferimento. Efetivamente meu maior
sofrimento foi com as dores no braço, cheguei a perder o foco do câncer. Me
senti mutilada, por um erro. Eu não tinha que passar por isso, o médico sabia
do meu diagnóstico de fibromialgia, sabia que minhas veias não iriam aguentar e
sequer permitiu que minha mãe ou meu marido me acompanhassem durante a
aplicação.
Por
diversos momentos, as dores eram tão intensas que eu gostaria de ter uma faca
comigo para cortar o braço e me livrar da dor. Deus me livre, mas se eu tivesse
uma faca teria feito uma loucura. E eu nunca soube a opção de parte dos médicos
pela amputação, nunca disseram a mim. Meu marido sofria com essa possibilidade,
mas não pode compartilhar comigo. O medo que vou carregar, agora, é um câncer
no seio direito, porque seria inoperável em razão das sequelas do braço. Até
mesmo se um mosquito me picar pode causar grandes danos.
Fui
roubada no direito de estar com as minhas filhas num momento muito delicado,
quando eu precisava muito desse contato e elas precisavam estar cientes e
próximas de mim, para que pudéssemos nos fortalecer. Eu nunca antes havia
ficado longe delas.
Eu
estou expondo meu caso, até mesmo me expondo, para que outras pessoas não
tenham que passar por tudo que eu passei. Para que outros médicos aprendam com
este erro e que os paciente fiquem atentos a procedimentos errados que possam
vir a ser tomados e reclamem antes que o problema atinja as proporções do meu.
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