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quarta-feira, 27 de março de 2013

ERRO MÉDICO: A dor do descaso


Campo Grande foi coberta por outdoors e leds sobre um erro médico que quase custou a amputação do braço de uma paciente vítima de descaso em procedimento quimioterápico.

Após o diagnóstico de um tipo dos mais agressivos de câncer de mama, Kênia Reis enfrentou todo o tormento psicológico que se segue ao fato de encarar uma doença estigmatizada como a própria morte, ou a deformação física. Por mais avançados que estejam os tratamentos para os diversos tipos de câncer, menos agressivos e com menores sequelas, a citação do termo provoca transtornos pessoais e familiares sem conta.
Vencida a primeira etapa de sua jornada, realizada com pleno êxito a cirurgia, iria conhecer a real e mais temível barreira entre a doença e a cura: o erro médico.
Conheça o histórico do caso conforme descrito por Marcos César Américo dos Reis, marido de Kênia.

Erro em quimioterapia quase leva à amputação do braço


Minha esposa, Kênia Reis recebeu o diagnóstico de câncer de mama em abril de 2012. Procuramos um mastologista, Dr. Victor Rocha [Pires de Oliveira], e agendamos a cirurgia para o dia 16 de maio. No dia 30 de maio, fomos a São Paulo para uma consulta no Hospital Sírio-Libanês, com o Dr. Arthur Katz. Queríamos uma opinião para o tratamento oncológico quimioterápico, que é definido após o resultado dos exames do material colhido. Ficou estipulado que seriam 4 aplicações de AC [Adriamicina (Doxorubicina), Ciclofosfamida] a cada 21 dias e 12 de IT.
Com a indicação em mãos, nos deram a opção de realizar o tratamento no próprio Hospital Sírio-Libanês, ou em Campo Grande. Retornamos. Trouxemos o formulário médico completo e muito bem elaborado pela equipe do Dr. Arthur Katz, que indicava ser ela portadora de fibromialgia [uma forma de reumatismo associada à da sensibilidade do indivíduo frente a um estímulo doloroso que atinge músculos, tendões e ligamentos.]. Entregamos na clínica. Marcamos a primeira sessão de quimioterapia para o dia 8 de julho. Fomos, eu e minha sogra, acompanhando a Kênia. O erro começou no modo de aplicação, pois por ser um tratamento longo, o indicado é o uso de um cateter portacath [cateter implantado em procedimento de pequena cirurgia e após anestesia local] para evitar inocular através de veias.
  
De qualquer forma, o enfermeiro, seguindo orientações do médico responsável pela clínica, tentou por três vezes “pegar a veia”, mesmo com a Kênia reclamando das fortes dores. Ela, inclusive, questionou se não seria melhor o uso do portacath. O enfermeiro consultou o médico que orientou que ele continuasse o procedimento. Uma enfermeira conseguiu aplicar, mas pouquíssimo tempo passado e a Kênia começou a sentir formigamento no local da aplicação. Como o ambiente era climatizado e ela estava de blusa de mangas compridas, não verificou o local, mas avisou a enfermeira que comunicou ao médico responsável. Ele estava no consultório em outra consulta e apenas disse que era normal. Ela, então, suspendeu a manga da blusa e percebeu que o braço estava avermelhado. A enfermeira retirou o medicamento, interrompeu o tratamento e, quando consultado, o médico disse que era apenas uma flebite [todo tipo de inflamação que ocorre na parede de uma veia]. A recomendação foi aplicação de gelo, analgésico e encaminharam para casa. A dose aplicada foi parcial porque interrompido e parte do medicamento injetado fora da veia. Kênia foi para casa chorando de dor, agravada pela fibromialgia, e iniciou aplicação de gelo, analgésicos. Ligamos para a clínica, voltamos lá. O médico disse que era para interromper a aplicação do gelo e tomar o medicamento Tilex. A dor não cedeu. Tentamos contato telefônico por toda a noite e o médico não atendeu.

“O caso dela teve uma repercussão tão grande que foi tema de congressos. Nunca os médicos haviam visto tamanho dano físico por vazamento quimioterápico.”
Conseguimos falar com o enfermeiro, foi em casa e, de lá, entrou em contato com o médico. Ele manteve o diagnóstico de flebite. [O extravasamento é possível, mas não toma uma área tão extensa porque, quando detectado, é imediatamente suspenso e, no local e em forma de cruz, são aplicadas injeções de corticoide para limitar a área afetada.] 
Consultamos a Dra. Carmencita [Sanches Lang], da Clínica Hope. Ela precisava a informação de quanto medicamento havia sido administrado. Pedi ao médico que informasse. Ele apenas enviou por e-mail. Como o procedimento para a contenção do líquido não foi tomado na hora, tivemos que esperar o líquido delimitar para observar a extensão e profundidade atingidas, onde cria uma necrose. Só após a retirada do material necrosado, vai se conhecer a real extensão do dano e quais os procedimentos a tomar.
Kênia, apesar da “queimadura química” no braço, tinha que continuar o tratamento e, no dia 23 de junho colocou o portacath e fez a primeira quimio, agora com a Dra. Carmencita. Na segunda aplicação, a necrose no seu braço havia avançado, o que lhe causava dores quase insuportáveis. Ficou internada entre 14 de julho e 18 de agosto, período em que fez a terceira sessão de quimio. Durante todo esse período ela recebeu morfina para manter a dor suportável. Nesse período, o médico que efetuou a primeira quimio, não nos ligou uma vez sequer para saber do andamento do tratamento. Neste processo precisávamos de um cirurgião microvascular para executar o processo de “debridamento” [ou desbridamento é remoção do tecido necrosado de uma lesão].
O Dr. Kleder Gomes de Almeida, executou o procedimento após ela haver sido transferida do Hospital Miguel Couto para o Hospital do Pênfigo, para avaliação da extensão do dano. Até esse momento ela havia sido submetida a três sessões de quimioterapia, agora passaria por três debridamentos.
O Drama da amputação

Retirada toda a necrose, a questão era decidir pela amputação, ou não, do braço. Havia a dúvida sobre a possibilidade de um enxerto, alguns médicos não acreditavam nessa possibilidade, dada a gravidade da lesão.

Decidimos por uma consulta no Hospital Sírio-Libanês. Fomos atendidos em 28 de agosto, pelos Drs. Katz e Marcelo Sampaio, cirurgião plástico que opera na equipe do [Prof.] Dr. Alfredo [Carlos Simões Dornellas] de Barros, mastologista. A condição para a cirurgia era dar continuidade ao tratamento naquele hospital, sob supervisão de sua equipe. Fez, então, a quarta quimio. Dia 8 de setembro foi realizada a primeira cirurgia de enxerto e poucos dias após, iniciou a fisioterapia. Salvaram o braço.

Faltavam as quimioterapias com Taxol, mas em função dos agravantes, as aplicações foram efetuadas a cada quinze dias. Depois foi a radioterapia que terminou em 10 de janeiro de 2013. Ficamos residindo em São Paulo por seis meses, em função do tratamento.

O caso dela teve uma repercussão tão grande que foi tema de congressos. Nunca os médicos haviam visto tamanho dano físico por vazamento quimioterápico. O último caso semelhante registrado havia sido na década de 1980. A equipe médica ficou indignada.
O que nos doeu foi a “virada de costas” da clínica e, por conseguinte do médico responsável. Problemas acontecem, entendemos isso, mas até hoje ninguém da clínica nos contatou.

Ação jurídica

Nós entramos com uma ação contra a Clínica, contra o médico responsável e contra a Unimed, porque ele é um autorizado pelo plano de saúde. E por que eu vou mexer com isso agora? Porque agora ela está bem e quer que isso sirva de lição porque o braço, nunca vai voltar a ser normal.
Queremos uma cobrança da responsabilidade. E este é um momento muito bom pela oportunidade que está sendo criada pela série de matérias aqui que você está fazendo aqui no Jornal Liberdade. A imprensa costuma ficar distante, e o espírito corporativo da classe médica influi criando uma barreira de defesa.
Foi realizada uma perícia janeiro de 2013, a pedido do Juiz, e temos os prontuários do Sírio-Libanês, depoimentos de médicos, enfim. Outra razão é em defesa das próprias clínicas sérias, dos bons profissionais, porque a partir do caso da Kênia, muitos pacientes passaram a procurar hospitais em São Paulo para os procedimentos de quimioterapia, como se a desconfiança tivesse contagiado todas as clínicas de nossa Capital.


DEPOIMENTO DE KÊNIA

Eu não tinha que passar por isso...

Eu já estava debilitada, emocionalmente instável com o diagnóstico de câncer e o risco de outros dois nódulos nas auréolas serem tumores malignos. Ficou comprovado apenas um tumor e determinado que seria feita a retirada deste tumor e cinco gânglios que não acusaram malignidade, felizmente.
Mas não basta o temor da doença e seu estigma que o paciente carrega, existe o fator família, porque todos são afetados, tanto quanto o doente. E a força tem que partir de você porque eles se transformam em espectadores impotentes. Como a cirurgia foi um sucesso, veio a sensação numa mistura de alívio, mas com o temor de passar pelo período da quimioterapia com seus efeitos colaterais, também o momento de fragilidade, a alteração de seu visual como que você perdesse um pouco de sua personalidade.
Meu câncer era de um tipo muito agressivo, então a partir do problema causado pelo erro na aplicação o foco dos médicos era entender como manter a quimio para combater o câncer e ao mesmo tempo tratar o ferimento. Efetivamente meu maior sofrimento foi com as dores no braço, cheguei a perder o foco do câncer. Me senti mutilada, por um erro. Eu não tinha que passar por isso, o médico sabia do meu diagnóstico de fibromialgia, sabia que minhas veias não iriam aguentar e sequer permitiu que minha mãe ou meu marido me acompanhassem durante a aplicação.
Por diversos momentos, as dores eram tão intensas que eu gostaria de ter uma faca comigo para cortar o braço e me livrar da dor. Deus me livre, mas se eu tivesse uma faca teria feito uma loucura. E eu nunca soube a opção de parte dos médicos pela amputação, nunca disseram a mim. Meu marido sofria com essa possibilidade, mas não pode compartilhar comigo. O medo que vou carregar, agora, é um câncer no seio direito, porque seria inoperável em razão das sequelas do braço. Até mesmo se um mosquito me picar pode causar grandes danos.
Fui roubada no direito de estar com as minhas filhas num momento muito delicado, quando eu precisava muito desse contato e elas precisavam estar cientes e próximas de mim, para que pudéssemos nos fortalecer. Eu nunca antes havia ficado longe delas.
Eu estou expondo meu caso, até mesmo me expondo, para que outras pessoas não tenham que passar por tudo que eu passei. Para que outros médicos aprendam com este erro e que os paciente fiquem atentos a procedimentos errados que possam vir a ser tomados e reclamem antes que o problema atinja as proporções do meu.

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