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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Cofre de Histórias - por Vanda Ferreira

Certo dia fiz longa pausa diante de entulhos, induzida pela atração incontrolável na releitura de coisas antigas, velhas, abandonadas. Pulsa um mundo em cada objeto descartado, substituído ou simplesmente desprezado.

Descobri que estava diante de uma montanha de ideias, mistérios de histórias ocultadas, mascaradas, despejadas ali naquele monte de lixo. Por dedução tentei decifrar o passado de quinquilharias, como, por exemplo, a quem pertenceu, se teria sido útil, amado, mal tratado... Há justiça destinar para a inutilidade aquilo que nos serviu? 

Pausei o olhar sobre um ramalhete de rosas murchas. As pétalas, já desidratadas pelo passado tempo, insistiam em sangrar a originalidade da imponência vermelha do rubi, talvez o capítulo principal de um breve romance. Cena que me inspirou ao retrocesso. O plantio daquelas flores, sua colheita, a comercialização, o presentear, a emoção de cada fase de vida daquelas rosas, tudo que se processou até nosso primeiro encontro, onde a cumplicidade estabeleceu a conexão entre dois mundos de coisas feitas pelo homem vivo e o morto. 

Interroguei a mim mesma, e meus “botões” ficaram por demais curiosos quanto à missão daquele ramalhete, que apesar de jazer ao lixo, mantinha um certo quê de exclusiva beleza. Teria obtido êxito ao objetivo que lhe propuseram? Quantos prazeres e a quantas pessoas aquelas rosas teriam proporcionado antes, durante e após sua transformação em ramalhete, além de meu apreço?

Ao avistar uma velha porta quebrada, escombro de algum prédio reformado ou demolido, imaginei se alguém sentou-se ao seu batente para meditar com o pé no chão, ou se algum casal, em beijo de despedida a fez de marco da separação, ou a usou como portal para alegre beijo de reencontro.

Todo lixo tem história. Cada um daqueles objetos já proporcionou alguma ou várias emoções, tristes ou alegres aos seus abandonadores que, por algum motivo, num certo (ou até mesmo incerto) momento fora descartado, posto do lado de fora da intimidade, enfim apartados de suas vidas. 

No lixo são jogadas coisas que avivam sentimentos. Desfazemos de capítulos ou promovemos o fim de convivência, fim de historia, ponto final de um trecho percorrido em paralelo com a tal coisa depositada na lixeira. Talvez joguemos no lixo as coisas significativas, como se decretássemos a morte de dolorosas lembranças. Desfazemos de coisas sem ritual de despedida, sem chance para voltar. É a hora da maldade, do infame egoísmo no gesto que despreza a continuidade de vida.

Por outro lado impera a positividade no desejo para limpar passado, na soberana sede pelo novo absoluto, pelo sonho virgem que renova a esperança intuitiva de coisas melhores.

Com certeza cada um dos componentes daquele amontoado, marcou momento histórico, episódio no qual somente o próprio objeto pactuou da cumplicidade sentimental. Nessa apreciação vi infinidade de coisas que juntaram seus destinos, suas lendas, seus fracassos finais, mas que, no entanto mantiveram as individualidades coadjuvantes ou protagonistas de contos, poemas, canções e prosas.

Ao redor: a velha árvore, o buraco na terra, o caco de garrafa, a lixeira, a panela amassada e furada, a xícara partida e inúmeros outros muitos objetos, cada qual sendo um cofre de histórias codificadas.


Vanda Ferreira - escritora

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